segunda-feira, 24 de março de 2008

Da gaveta

II Guerra Mundial. 1944. Cascais. Um paraíso perdido para milhares de europeus, judeus ou não, que fugiam da sua pátria em direcção a Portugal, onde permaneciam até conseguirem o visto de saída, que os permitisse partir para os EUA e não mais voltar.
É já noite sobre a baía. Dentro do quarto do Grand Hotel, a luz azulada e intermitente dos néons da fachada do edifício era a única iluminação.
Irina e Tomislav fumam pausadamente um cigarro, envoltos nos alvos lençóis desalinhados. Irina e Tomislav têm trinta anos e deixaram a Hungria natal, onde se haviam casado há dois anos, fugindo dos Nazis. Em cima da mesa de cabeceira de 3 gavetas, em madeira escura, repousava o revólver de cabo de marfim, que Tomislav havia herdado de seu avô, tenente coronel no exército imperial Austro-húngaro e que agora trazia sempre consigo, sempre na expectativa de afastar o perigo eminente.
Lá fora, o marulhar das ondas na praia trazia para aquele quarto, onde se respirava ansiedade, o cheio a maresia.
Tomislav apagou o cigarro no cinzeiro metálico. – Lembraste-te daquele dia em que me foste buscar ao Ministério? – disse, interrompendo aquele silêncio perturbador. Trazias aquele teu vestido azul pálido e debaixo do braço uma garrafa de vinho, que nos tinham oferecido no nosso aniversário de casamento? E como nos divertimos naquele entardecer, no parque em frente ao Ministério?
Irina sorria, mas não respondeu. Sorria da recordação daquele momento, sorria pelos dois anos de um casamento feliz e outros tantos de namoro. Mas não deixava de sentir um aperto no coração sempre que tomava consciência de que haviam deixado tudo para trás, sem a certeza de conseguir chegar ao destino prometido e continuar a levar para diante a vida plácida que até então tinham.
Medo de nem sequer conseguirem chegar aos Estados Unidos, medo de uma hipotética separação, atendendo à incerteza de conseguirem ou não os vistos…
Irina sabia que a partir da partida da Hungria, tudo seria diferente. Eram refugiados como tantos outros. Dezenas, centenas, milhares. Seria difícil Tomislav conseguir um emprego tão bem remunerado como aquele que tinha no Ministério húngaro. Sabia que tão pouco voltaria a pisar um palco para dançar. Um sonho desfeito. As luzes estavam apagadas. No palco. No quarto. No destino.
Irina afagou o peito de Tomislav e adormeceu.

2 comentários:

Teresa disse...

Muito teria eu a dizer sobre isto.

A II Guerra Mundial é para mim motivo de fascínio, sempre li tudo o que podia sobre o assunto, a partir do dia em que, aos nove anos (bem cedo que foi estupidamente cedo), deitei as unhas ao Diário de Anne Frank.

O presente que o Vítor me deu este Natal foi o extraordinário The World at War da BBC, que eu aliás tinha quase completo, fruto de pacientes gravações semanais quando a TV2 o repetiu em 94...

Sobre essa época em Portugal... gostaria de lhe recomendar um livro especial para mim: Uma Noite em Lisboa, de Erich Maria Remarque. E um outro, lido há muitos anos (tenho-o algures em casa da minha Mãe) lido há muitos anos, animado ao estilo James Bond: Nem Só de Caviar Vive o Homem.
Um beijo.

Pedro disse...

Muito tem a Teresa para dizer e eu para responder, que nem sei por onde começar!

O Diário de Anne Frank, li-o também por essa idade e terá sido um dos que mais me marcou também.

Erich Maria Remarque cresci com ele nas estantes; é um dos autores preferidos da Avó, embora eu ainda não tenha lido nada dele, apesar de ter cá em casa pelo menos dois livros dele, confesso que ainda não sei onde!

Quanto à II guerra mundial, a história da minha família, apesar de em Portugal e de não viverem no Estoril, acabaram por a viver bem de perto e terei muitas histórias para contar...

E finalmente, um dos meus filmes preferidos, que qualquer dia falarei dele, tem precisamente como cenário a II Guerra...