sábado, 22 de dezembro de 2012

180º


Ponho a última fornada de bolachas de gengibre no forno. Vamos ver se não queimo estas. 
Continua a não parecer Natal. Talvez porque ainda não ter coragem de ligar para o P., para saber da mãe. Para saber o que o médico lhe tinha para dizer. Se tinha de fazer quimio ou radio. Se havia metástases  Ou se calhar, nada disso, que a operação tinha sido um sucesso. Não sei.
É Natal e eu não sinto Natal. Estou farto de doenças. Se calhar pouco me importa que a avó do D. tenha começado a radio ou não, que o pai da L. esteja a passar bem com ela, apesar dos efeitos secundários. Eu é que não me queria importar. O pai do H. foi novamente internado. Eu amassava bolachas de gengibre.
Este ano talvez tenha a mais bonita árvore de Natal. Não sei. Nunca me custou tanto aquela visita. Nem mesmo quando a madrinha do meu irmão, ou o seu cadáver por ela, abrir a boca para comer, como se quisesse comer a vida, que não a queria a ela. Ou ver o avô preso a uma cama, a lutar contra a imobilidade e até a demência. Quantas vezes me debrucei sobre ele para verificar se ainda respirava – tantas quantas não me reconheceu.
Nunca a vi tão fraca, tão em sofrimento. Esforço hercúleo simplesmente estar. E parecer que estava. Pediu-me desculpa por estar tão irritantemente irritada. Mantive o sorriso. Não sei. Quero acreditar que mantive o sorriso. Nunca me custaram as visitas a hospitais. Bem sei o que é esperar pelas duas horas da tarde para que nos venham ver. Para que os dias não sejam iguais. 
Há decorações espalhadas pelos corredores. Uma voluntária montava a árvore de Natal à entrada. Eu ponho as bolachas de gengibre no forno, esperando que não se queimem.

6 comentários:

Um Jeito Manso disse...

Este texto não é fácil, este texto respira, não é de plástico. A haver aqui uma árvore de natal ela seria mesmo uma árvore a sério, enfeitada por gotas de orvalho e não uma árvore branca de plástico com bolas às cores.

Gostei muito de ler, apesar das dores.

Seja como for, desejo-lhe um bom Natal.

PS: E, já que não pode dar-me a provar uma, há-de ensinar-me a fazer essas bolachinhas, têm ar de ser boas.

Alexandra disse...

Realmente, assim não há mesmo espírito.

Que tudo corra pelo melhor.

Helena Araújo disse...

Sem palavras. :(
Com um abraço.

Pedro disse...

Obrigado! A receita segue por mail :)

Pedro disse...

Obrigado Alexandra!

Pedro disse...

Obrigado Helena